
Jesus advertiu os seus discípulos de que a
condenação do fariseu não tinha paralelo entre os demais pecadores daqueles
dias. As prostitutas, os publicanos, os
pervertidos e os demais párias daquela sociedade – com os quais Jesus estava em
permanente contato – jamais receberam tão intensas ameaças de severo juízo
quanto os fariseus. Com essa afirmação eu não estou dizendo que eles não eram
também passíveis de juízo, pelos seus próprios pecados. O que estou dizendo é
que para Jesus, os pecados deles eram pecados mais “verdadeiros”. Nem por isso
eles deixaram de estar sob o crivo do juízo de Deus; porém, com muito menor
rigor, nos graus da condenação, do que o que estava prometido para o falso
religioso.
Jesus disse que “por fora” os fariseus
eram perfeitos; todavia, o interior era um lixo. O Senhor disse que era como
alguém que só lava o prato de comida por fora e que é capaz de comer no mesmo
prato sujo, a vida toda (você pode se imaginar comendo no mesmo prato sujo a
vida inteira? Você pode se imaginar bebendo água num copo sujo por toda a sua
vida?). E ainda: que eles eram como sepulcros pintados de branco – mostrando
beleza enquanto a podridão acontecia do “lado de dentro”. Isso significa que é
bastante possível que as pessoas se escondam sob as vestes religiosas para
mascararem seus reais valores interiores. Muita gente, e mesmo jovens, se
esconde sob o disfarce religioso a fim de pecar com mais “segurança”.
Psicologicamente falando, esse
fenômeno de se esconder embaixo das vestes religiosas para pecar com mais
profundidade não é totalmente estranho.
Aliás, o melhor lugar para esconder nossa
própria maldade é a igreja. Nós que
somos membros da igreja devemos sempre ter a coragem de perguntar o que significa
nossa presença no ajuntamento do povo de Deus. Isso porque na igreja há sempre
dois tipos de pessoas: aquelas que escondem sua própria maldade e dureza
interior sob o disfarce da fé e da moralidade, e aquelas que se conhecem como
pecadoras e que escondem a si mesmas sob o sangue de Jesus. O primeiro grupo
esconde a sua maldade. O segundo grupo esconde a si mesmo enquanto confessa a
sua própria culpa.
A questão é: como pode isso se desenvolver? Eu ouso afirmar que o problema está nos
nossos padrões de espiritualidade, os quais muitas vezes são falsos. Por isso,
quando alguém está tentado a pecar, está também, automaticamente, tentado a
esconder sua tentação sob o disfarce do radicalismo comportamental. Dessa
forma, quase sempre os cristãos, antes de caírem numa tentação, caem em uma
outra: a tentação de aparentarem uma vida que está para além da possibilidade
do pecado. Obviamente ninguém fica mais vulnerável ao pecado do que aquele que
não admite sua própria vulnerabilidade.
Acontece que isso é um círculo
vicioso. Primeiro, a pessoa é tentada. Depois ela sente a obrigação de mascarar
essa realidade. Ora, quando isso acontece essa pessoa está se condicionando
psicologicamente para se tornar um hipócrita.
E que é o hipócrita, senão aquele que não
assume o que é e aquilo contra o que luta?
E quem consegue viver a vida inteira escondendo de si mesmo e dos irmãos as
suas fraquezas sem que, de um modo ou de outro, acabe caindo diante daquilo que
ele nega como sendo sua própria sedução?
Daí, a inferência de que quanto mais “espiritual” for o ajuntamento
cristão, mais propício ao pecado ele será. Justamente aqui nós estamos diante
de um grande paradoxo cristão: bem-aventurados sejam os fracos, os mansos e
aqueles que são capazes de chorar. Somente depois é que se fala dos limpos de
coração.
Só é limpo de coração quem limpa o coração
diante de Deus e dos irmãos, mediante frequentes confissões de carência humana. Não existe tal pessoa limpa de coração que
seja solitária e incapaz de constantes revisões de vida. Não existe ninguém
permanentemente limpo de coração. Existem apenas aqueles que se deixam limpar
mediante a confissão e a sinceridade de uma vida que não tem medo de ser
suficientemente humana para confessar tendências em vez de assumir um outro
lado de sua humanidade: o pervertido lado de sua humanidade-inumana, que prefere
esconder tendências e viver pecados.
Quando esse tipo de comportamento se
desenvolve, o que acontece é que a tendência da pessoa é assumir cada vez mais
a “santidade” publicamente, a fim de compensar suas incoerências vividas nos
bastidores. Daí que pessoalmente eu me impressiono muito mal com pessoas cuja
ênfase na santidade me soe um tanto extravagante. Para mim, na maioria das
vezes esse comportamento esconde um conflito interior justamente naquela área
que se tornou um obsessivo discurso. Pessoas equilibradas tendem a falar de
tudo, ao invés de se tornarem obcecadas por um discurso só. E mesmo quando
alguém tem uma ênfase pessoal e particular na vida, se essa pessoa é saudável
tal ênfase será vivida sem nenhum espírito de cobrança para com aqueles que não
conseguem viver a vida com o mesmo peso, naquela área. Ora, tudo isso me leva a
afirmar que muito daquilo que temos chamado de “consagração” na vida cristã
possivelmente não passe de um atestado de nossa própria conflitividade não
confessada e não assumida.
O que complica bastante a situação
daquele que assim se comporta é o fato de que quando alguém vive com tal
capacidade de se disfarçar, isso pode significar que ela está desenvolvendo uma
profunda maldade em sua própria alma: a maldade de ser tão mal, que tenta
enganar a todos sob a máscara da bondade. Vale lembrar que para Jesus esse era o
mal maior na vida, o mal dos fariseus, o mal dos religiosos, o mal dos falsos
profetas, daqueles que se mostram ovelhas mas que de fato são lobos.
Nós que somos pessoas da igreja precisamos
urgentemente aprender que a maior mentira que se comete na vida não é aquela
que se diz, mas aquela com a qual se vive.
Precisamos recuperar o senso de “intimidade” e de “interioridade” das verdades
do Evangelho. Temos que pedir a Deus que nos liberte das falsas e malignas
noções de espiritualidade. É urgente que reassumamos nossa herança Reformada, a
qual afirma nossa impossibilidade inerente para a bondade absoluta, e nos
remete humildes e dependentes para a graça de Deus.
Caso contrário, corremos o risco de
nos tornarmos pessoas muito más. Aliás, a História está repleta de testemunhos
dessa nossa capacidade de nos tornarmos mais maus do que os mais maus.
Este mal vem justamente da nossa relação com o
Sagrado. Nada é mais intenso que aquilo que é
divino. Quando alguém mantém uma sadia relação com o Sagrado, tal pessoa
torna-se santa e bonita. De outro lado, quando a relação com o Sagrado acontece
desde uma perspectiva de orgulho, autossuficiência e hipocrisia, então nada faz
adoecer mais do que essa versão religiosa da maldade. Daí que Lúcifer tornou-se
mau na exata proporção de sua anterior virtude. Assim, onde abundou a graça, superabundou
o pecado. Nós temos afirmado esse princípio apenas na dimensão paulina: “onde
abundou o pecado superabundou a graça”. Todavia, Pedro coloca a mesma verdade
desde uma outra referência histórica: “o seu estado se torna pior do que
primeiro”. Ou ainda: “melhor lhes fora jamais terem conhecido o caminho da
verdade do que, após o terem conhecido, o abandonarem”.
Certa vez C. S. Lewis disse que o pior diabo é
aquele que nós pensamos que não existe.
Eu ouso, respeitosamente, contrariar esse que foi um dos maiores pensadores
cristãos de todos os tempos, para dizer que, para mim, o pior diabo é aquele ao
qual nós nos “acostumamos”. Isso porque quando alguém não sabe ou não crê que o
diabo existe, está menos exposto à total força do diabo, pelo simples fato de
“sinceramente” não crer ou não admitir a existência dele. Há um grande poder
espiritual na verdade, mesmo que aquele que a demonstre seja um ateu. Todavia,
quando alguém sabe que o mal existe como mal real e objetivo, mas a despeito disso
vive em cínica indiferença para com esse poder, tal pessoa não se torna apenas
vulnerável ao mal, mas se torna, ela mesma, parte da própria realidade do mal.
Ninguém é mais maligno do que aquele que consegue se tornar indiferente ao poder
do mal enquanto admite a sua existência. Gente assim vive uma espécie de “crente-descrença”
no poder do mal. Ora, é simples inferir que é mais fácil achar gente assim
domingo de manhã na igreja, do que num laboratório de ateus confessos. É mais
fácil achar esses jovens cantando com as mãos levantadas num culto animado, do
que nas praças. Aqueles que estão vivendo sua alienação de Deus e do diabo
muitas vezes fazem isso em absoluta ignorância; mas muitos dos que lotam nossos
templos cristãos e nossas reuniões são do tipo de gente que consegue “levantar
as mãos ao Senhor” e depois, mesmo contra a Palavra do Senhor que eles
conhecem, ser capaz de levar uma irmãzinha, companheira de louvor, “para a
cama”.
Eu sei que para muita gente as afirmações
que tenho feito podem soar excessivamente fortes. No entanto, não tenho o menor
temor de estar equivocado a esse respeito. Tenho a própria história bíblica e a
história da Igreja para confirmarem tais declarações. E além disso, é só olhar
em volta para se constatar que há uma grande abundância de testemunhos
contemporâneos corroborando o que estou dizendo.
Tudo o que eu disse até aqui tem a finalidade
de estimular você, que deseja andar com Jesus, a coerentemente tomar a cruz e
segui-lo. Não é fácil assumir as dores que vêm
como resultado de uma vida sincera. É duro, o preço da verdade. Mas é a única
forma de andar com Deus. É preciso ter “coragem de ser diferente”. Não
diferente apenas mediante uma postura de “fachada”. É preciso ser diferente
desde o coração. Só assim se edifica um “compromisso capaz de fazer diferença”.
Faz quinze anos que eu venho andando
com Jesus e fazendo todo o possível para, no dia a dia, não me esquecer dessas
verdades a respeito das quais acabei de escrever. Mas uma coisa tem me ajudado
muito, nesses anos: a lembrança de que eu não tenho que ser, para ninguém,
qualquer coisa além daquilo que Deus sabe que eu sou. Isso me ajuda a não ter
medo de ser gente.
Todavia, essa mesma verdade me ajuda a
ser aquilo que, na graça de Deus, eu devo ser na minha “identificação gradual na
História”. E quando me sinto tentado a pensar diferente, eu me lembro que os
felizes, do ponto de vista de Jesus, são os que têm coragem de chorar, os
mansos, os que têm fome e sede de justiça – ou seja, os que querem mais –, os
misericordiosos, os que se purificam na graça de Deus, os que vivem para
construir pontes entre os separados pelo ódio, e os que assumem a perseguição
como o resultado mais natural da sua relação com Jesus, aquele que por viver
tão diferentemente dos padrões vigentes, sofreu o preço de uma existência capaz
de ser radicalmente relevante; aquele que mostrava seu brilho pessoal a poucos (transfiguração),
mas que não teve vergonha de mostrar sua dor e verdade humanas a todos, na
cruz.
Somente vivendo com essa compreensão
evitaremos a terrível realidade de nos tornarmos hoje os fariseus que Jesus
repudiou ontem. Como você viu, não há muita distância entre um jovem e um
fariseu bem apessoado. Cabe a você jamais chegar lá.
Rev. CAIO FÁBIO D’ARAÚJO
FILHO
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