
Estou convencido de que um é o evangelho
dos evangélicos, outro é o evangelho do reino de Deus. Registro que uso o termo
“evangélico” para me referir à face hegemônica da chamada igreja evangélica,
como se apresenta na mídia radiofônica e televisiva.
O evangelho dos evangélicos é estratificado. Tem a base e tem a cúpula.
Precisamos falar com muito cuidado da base, o povo simples, fiel e crédulo. Mas precisamos igualmente discernir e denunciar a cúpula. A base é
movida pela ingenuidade e singeleza da fé; a cúpula, muita vez é oportunista,
mal intencionada, e age de má fé. A base transita livremente entre o
catolicismo, o protestantismo e as religiões afro. A base vai à missa no
domingo, faz cirurgia em centro espírita, leva a filha em benzedeira, e pede
oração para a tia que é evangélica. Assim é o povo crédulo e religioso. Uma das
palavras chave desta estratificação é “clericalismo”: os do palco manipulando
os da platéia, os auto-instituídos guias espirituais tirando vantagem do povo
simples, interesseiro, ignorante e crédulo.
A cúpula é pragmática, e aproveita esse
imaginário religioso como fator de crescimento da pessoa jurídica, e
enriquecimento da pessoa física. Outra palavra chave é “sincretismo”. A medir
por sua cúpula, a igreja evangélica virou uma mistura de macumba,
protestantismo e catolicismo. Tem igreja que se diz evangélica promovendo
“marcha do sal”: você atravessa um tapete de sal grosso, sob a bênção dos
pastores, e se livra de mal olhado, dívida, e tudo que é tipo de doença. Já vi
igreja que se diz evangélica distribuir cajado com água do Jordão (i.é, um
canudo de bic com água de pia), para quem desejasse ungir o seu negócio, isto
é, o seu business. Lembro de assistir a um programa de TV onde o apresentador
prometia que Deus liberaria a unção da casa própria para quem se tornasse um
mantenedor financeiro de sua igreja.
O povo religioso é supersticioso e cheio de crendices. Assim como o
Brasil. Somos filhos de portugueses, índios, africanos, e muitos imigrantes de
todo canto do planeta. Falar em espíritos na cultura
brasileira é normal. Crescemos cheios de crendices: não se pode passar por
baixo de escada; gato preto dá azar; caiu a colher, vem visita mulher, caiu
garfo, vem visita homem; e outras tantas idéias sem fundamento. Somos assim, o
povo religioso é assim. Tem professor de universidade federal dando aula com
cristal na mão para se energizar enquanto fala de filosofia.
E a cúpula evangélica aproveita a onda e
pratica um estelionato religioso: oferece uma proposta ritualística que
aprisiona, promove a culpa e, principalmente, ilude, porque promete o que não
entrega. Aliás, os jornais começam a noticiar que os fiéis estão reivindicando
indenizações e processando igrejas por propaganda enganosa.
O evangelho dos evangélicos é estratificado. A base é movida pela ingenuidade e singeleza da fé, e a cúpula é
oportunista. A base transita entre o catolicismo, o protestantismo e as
religiões-afro, e a cúpula é pragmática. A base é cheia de crendices e a cúpula
pratica o estelionato religioso.
O evangelho dos evangélicos é mercantilista, de lógica neoliberal. Nasce a partir dos pressupostos capitalistas, como, por exemplo, a
supremacia do lucro, a tirania das relações custo-benefício, a ênfase no
enriquecimento pessoal, a meritocracia – quem não tem competência não se
estabelece. Palavra chave: prosperidade. Desenvolve-se no terreno do
egocentrismo, disfarçado no respeito às liberdades individuais. Palavra chave:
egoísmo. Promove a desconsideração de toda e qualquer autoridade reguladora dos
investimentos privados, onde tudo o que interessa é o lucro e a prosperidade do
empreendedor ou investidor. Palavra chave: individualismo. Expande-se a partir
da mentalidade de mercado. Tanto dos líderes quanto dos fiéis. Os líderes
entram com as técnicas de vendas, as franquias, as pirâmides, o planejamento de
faturamento, comissões, marketing, tudo em favor da construção de impérios
religiosos. Enquanto os fiéis entram com a busca de produtos e serviços
religiosos, estando dispostos inclusive a pagar financeiramente pela sua
satisfação. Em síntese, a religião na versão evangélica hegemônica é um negócio.
O sujeito abre sua micro-empresa religiosa,
navega no sincretismo popular, promete mundos e fundos, cria mecanismos de
vinculação e amarração simbólicas, utiliza leis da sociologia e da psicologia,
e encontra um povo desesperado, que está disposto a pagar caro pelo alívio do
seu sofrimento ou pela recompensa da sua ganância.
Em terceiro lugar, o evangelho dos evangélicos é mágico. Promove a infantilização em detrimento da maturidade, a dependência em
detrimento da emancipação, e a acomodação em detrimento do trabalho.
Pra ser evangélico você não precisa
amadurecer, não precisa assumir responsabilidades, não precisa agir. Não
precisa agregar virtudes ao seu caráter ou ao processo de sua vida. Primeiro
porque Deus resolve. Segundo porque se Deus não resolver, o bispo ou o apóstolo
resolvem. Observe a expressão: “Estou liberando a unção”. Pensando como isso
pode funcionar, imaginei que seria algo como o apóstolo ou bispo dizendo ao
Espírito Santo: “Não faça nada por enquanto, eles não contribuíram ainda, e eu
não vou liberar a unção”.
Existe, por exemplo, a unção da superação
da crise doméstica. Como isso pode acontecer? A pessoa passa trinta anos
arrebentando com o seu casamento, e basta se colocar sob as mãos ungidas do
apóstolo, que libera a unção, e o casamento se resolve. Quem não quer isso?
Mágica pura.
O sujeito é mau-caráter, incompetente para
gerenciar o seu negócio, e não gosta de trabalhar. Mas basta ir ao culto, dar
uma boa oferta financeira, e levar para casa um vidrinho de óleo de cozinha
para ungir a empresa e resolver todos os problemas financeiros.
Essa postura de não assumir
responsabilidades, de não agir com caráter, e esperar que Deus resolva, ou que
o apóstolo ou bispo liberem a unção tem mais a ver com pensamento mágico do que
com fé.
Em quarto lugar, o evangelho dos evangélicos tem espírito
fundamentalista. Peço licença para citar Frei Beto:
“O fundamentalismo interpreta e aplica literalmente os textos religiosos, não
sabe que a linguagem simbólica da Bíblia, rica em metáforas, recorre a lendas e
mitos para traduzir o ensinamento religioso.” O espírito fundamentalista é
literalista, e o mais grave é que o espírito fundamentalista se julga o
portador da verdade, não admite críticas, considerações ou contribuições de
outras correntes religiosas ou científicas.
Quem tem o espírito fundamentalista não
dialoga, pois considera infiéis, heréticos, ou, na melhor das hipóteses,
equivocados sinceros, todos os que não concordam com seus postulados, que não
são do mesmo time, e não têm a mesma etiqueta. Quem tem o espírito
fundamentalista se considera paradigma universal. Dialoga por gentileza, não
por interesse em aprender. Ouve para munir-se de mais argumentos contra o
interlocutor. Finge-se de tolerante para reforçar sua convicção de que o outro
merece ser queimado nas fogueiras da inquisição. Está convencido de que só sua
verdade há de prevalecer.
Mais uma vez Frei Beto: “o fundamentalista
desconhece que o amor consiste em não fazer da diferença, divergência”. Por
causa do espírito fundamentalista, o evangelho dos evangélicos é sectário,
intolerante, altamente desconectado da realidade. O evangelho dos que têm o
espírito do fundamentalismo é dogmático, hermético, fechado a influências, e,
portanto, é burro e incoerente.
Em quinto lugar, o evangelho dos evangélicos é um simulacro. Simulacro é a fotografia mais bonita que o sanduíche. Não me iludo, o
evangelho dos evangélicos é mais bonito na televisão do que na vida. As
promessas dos líderes espirituais são mais garantidas pela sua prepotência do
que pela sua fé. Temos muitos profetas na igreja evangélica, mas acredito que
tenhamos muito mais falsos-profetas. Os testemunhos dos abençoados são mais
espetaculares do que a realidade dos cristãos comuns. De vez em quando (isso
faz parte da dimensão masoquista da minha personalidade) fico assistindo estes
programas, e penso que é jogada de marketing, testemunho falso. Mas o fato é
que podem ser testemunhos por amostragem. Isto é, entre os muitos que faliram,
há sempre dois ou três que deram certo. O testemunho é vendido como regra, mas
na verdade é apenas exceção.
A aparência de integridade dos líderes
espirituais é mais convincente na TV e no rádio do que na realidade de suas
negociatas. A igreja evangélica esta envolvida nos boatos com tráficos de
armas, lavagem de dinheiro, acordos políticos, vendas de igrejas e rebanhos,
imoralidade sexual, falsificação de testemunho, inadimplência, calotes,
corrupção, venda de votos.
A integridade do palco é mais atraente do
que a integridade na vida. A fé expressa no palco, e nas celebrações coletivas
é mais triunfante, do que a fé vivida no dia a dia. Os ideais éticos, e os
princípios de vida são mais vivos nos nossos guias de estudos bíblicos e
sermões do que nas experiências cotidianas dos nossos fiéis. Os gabinetes pastorais
que o digam: no ambiente reservado do aconselhamento espiritual a verdade
mostra sua cara.
Estratificado, mágico, mercantilista,
fundamentalista, e simulacro. Eis o evangelho dos “evangélicos”.
Ed Rene Kivtz
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